Por Dênis de Moraes!
Em 26 de junho de 1969, surgia o
tabloide que iria influenciar o imaginário político-cultural das décadas de
1970 e 1980 — o Pasquim... O país vivia a ressaca do AI-5 e ... organizações
de esquerda já optavam pela via armada.
Setores progressistas de classe média
aspiravam por uma publicação que mantivesse a chama democrática acesa. O Pasquim cumpriria
a missão, reunindo alguns dos mais brilhantes jornalistas, cartunistas e
chargistas da época para satirizar o opressivo e desconjuntado dia-a-dia
nacional.... Este artigo relembra momentos marcantes do veículo pioneiro da
imprensa alternativa dos últimos decênios... Humor debochado, cortante e feroz
foi espírito indomável do Pasquim. Ao pé da letra, "humor
porrada", duro na queda, com a virulência de um Don Martin, da
revista Mad.
(...)
O Pasquim ... em pleno
reinado de trevas do general Garrastazu Médici ... Postou-se "como se precoces
vocações para o jornalismo dependessem daquela ponte mágica para alcançarem a
outra margem do rio caudaloso, onde suspeitávamos que estivesse a melhor
profissão do mundo" (a definição é de Gabriel García Márquez, primeiro diretor
da agência cubana Prensa Latina, escolhido pelo comandante Ernesto Che
Guevara).
( ... )
O cartunista Henfil tomou a si a responsabilidade de mobilizar e organizar
uma geração, juntando-se a Juarez Machado, Miguel Paiva, Ivan, Al e Vagner,
entre outros.... Naquele ninho de contestadores, Henfil — o único com a
carreira mais ou menos engrenada — representava um farol.
[ . . . ]
O Pasquim chegou às
bancas em 26 de junho de 1969, com a seguinte frase em seu cabeçalho: "Aos
amigos, tudo; aos inimigos, a Justiça". Em um texto mordaz, a equipe
expunha o seu ideário: "O Pasquim surge com duas
vantagens: é um semanário com autocrítica, planejado e executado só por
jornalistas que se consideram geniais, e que, como os donos dos jornais não
conhecessem tal fato em termos financeiros, resolveram ser empresários"...
O Pasquim não demorou
a acontecer, o número 1, com uma tiragem de 14 mil exemplares, trazia uma
entrevista de Ibrahim Sued ("Sou imortal sem fardão") e colaborações
de Chico Buarque ("Por que sou tricolor") e Odete Lara (escrevendo
sobre o Festival de Cannes), além do show de zombaria nos cartuns. Às onze
horas da noite daquela quinta-feira, Sérgio Cabral recebeu um telefonema de
Altair de Souza, da gráfica:
_Vamos ter que rodar mais 14 mil,
porque a edição esgotou!
[ . . . ]
O Pasquim impôs-se
pela imaginação incontrolável e pela quebra de formalidades. Com alvos claros:
a ditadura, a classe média moralista, a grande imprensa, os coniventes de
plantão. De quebra, ocupou o terreno baldio existente entre a cultura
chapa-branca e tradição de esquerda, discutindo modos de vida, padrões de
comportamento e até ecologia. Com a anticaretice e o humor venenoso do Pasquim,
o cenário morno do nosso jornalismo adquiriu alta voltagem. A diagramação
criativa valorizava as ilustrações (desenhos, caricaturas e montagens
fotográficas). As frases da capa aturdiam: "Pasquim, ame-o ou
deixe-o", "Um jornal que tem a coragem de não se definir",
"O papel da grande imprensa: papelão", "Cada povo tem o Idi Amin
que merece", "Imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e
molhados".
... As entrevistas coletivas
com personalidades as mais diversas (de Vinicius de Moraes e Darcy Ribeiro a
Madame Satã e Beki Klabin), tornaram-se chamariz do jornal. No bate-papo, sem
fronteiras rígidas entre entrevistados e entrevistadores (que opinavam
livremente), eram reproduzidas praticamente como saíam do gravador... Outra
sensação eram as Dicas... O Pasquim sobressaiu
como fonte geradora de cartunistas — lançou entre 100 e 200...
... O Pasquim funcionava como uma espécie de time de onze
Garrinchas - “Um verdadeiro Santos Futebol Clube, da época do Pelé" - ...
"com uma linha política mais ou menos comum, embora um jogue mais recuado,
outro avance bem mais, outro só lance. E há um ponto-chave: era um jornal de
humor". O Pasquim era quase impautável. Rascunhava-se uma
pré-pauta nas mesas dos botecos...
Ao instituir a censura prévia à
imprensa pelo decreto-lei nº 1077, de 26 de janeiro de 1970, o general Médici
advertia que não seriam toleradas publicações contrárias ao regime, à moral e
aos bons costumes. No número 39, a Polícia Federal requisitou os originais
do Pasquim . . .
Uma verdadeira força-tarefa...se
mobilizou para reeditar o Pasquim. Por consenso, resolveram
descentralizar os trabalhos, evitando que uma nova investida da repressão
dizimasse os sobreviventes. Uns trabalhavam em casa outros se refugiavam com
amigos e parentes. [ . . . ]
Um dos momentos culminantes do Pasquim foi
o Cemitério dos Mortos-Vivos. Nele, o cartunista Henfil enterrava, com sete
palmos de desacato e desprezo, personalidades que, a seu juízo, simpatizavam
com a ditadura, ou se omitiam politicamente... A prisão da equipe do Pasquim interrompeu
a série, retomada com vigor em fins de 1971. [ . . . ]
Na abertura política, o cartunista reavivou
a metralhadora giratória para personalidades do regime militar, como o
economista, diplomata e ex-ministro do Planejamento Roberto Campos, (Pasquim nº
710, 3 a 9/2/83); perfil de Campos, então senador pelo PDS de Mato Grosso:
"Nome: Roberto
de Oliveira Campos. Vulgo: Bob
Fields.
Naturalidade: MT,
muito antes da divisão do Estado.
Nacionalidade:
polivalente — 50% americano, 30% europeu, 10% petrodólar e 10% brasileiro (a
provar).
Profissão: economista
da velha guarda e senador da nova".
. . . Henfil integrou-se às memoráveis
campanhas pela anistia ampla, geral e irrestrita, pelo restabelecimento das
eleições diretas para governadores e pela convocação da Assembleia Nacional
Constituinte. A agonia final do Pasquim, na segunda metade dos anos
80, coincidiu com a doença e a morte de Henfil (4 de janeiro de 1988), um ano
antes, Henfil ainda mandava cartuns para o Pasquim. Nos anos seguintes,
seu companheiro Jaguar fez de tudo para assegurar a sobrevivência do jornal,
mas acabou tendo que passá-lo adiante. Na virada da década de 1990, o Pasquim saía
da vida para gravar na História as suas inesquecíveis jornadas de rebeldia e de
jornalismo verdadeiramente inovador.
Dênis de Moraes é pós-doutor em Letras (Estudos Literários) pela
Universidade Federal de Minas Gerais, doutor em Comunicação e Cultura pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor do Programa de Pós-Graduação
em Comunicação, Imagem e Informação da Universidade Federal Fluminense. É
autor, entre outros livros, de O rebelde do traço: a vida de Henfil (Editora
José Olympio, 1996), no qual se baseia este artigo.
O artigo completo está disponível em:
http://www.uff.br/mestcii/denis3.htm
- Acessado em 26/06/2013.