O zurro
desnacionalizante
Em todos
os setores onde as multinacionais passaram a ser predominantes, foram
eliminados, ou espremidos violentamente, os elos da cadeia produtiva que
fabricavam bens intermediários para a própria indústria. E sem indústria de
componentes, bens intermediários, é inútil falar em inovação tecnológica ou
salto de competitividade
CARLOS LOPES
Este artigo já estava
pronto quando acabamos de ler o relatório da consultoria norte-americana Price
Waterhouse (PW) sobre as "fusões e aquisições" no Brasil, correspondente
ao mês de abril. Por alguma razão, que não precisamos aventar, os relatórios
dessa consultoria são bem menos precisos que os da consultoria holandesa KPMG –
que são trimestrais – utilizados em artigo recente (ver HP, 25/04/2012 e,
sobretudo, a errata publicada na edição de 09/05/2012).
É um pouco triste ter que recorrer a
relatórios de consultorias holandesas ou norte-americanas para saber a situação
da economia brasileira. No entanto, assim é a vida. Um dia – esperemos que
brevemente – o Estado brasileiro poderá fornecer tais informações. Portanto,
continuemos.
[ . . . ]
Em suma, leitor, encontramos o seguinte:
Dia 01/06:
- A CTF, maior empresa nacional de cartões de combustíveis,
foi comprada pela norte-americana FleetCor Technologies.
- A SLC, uma das maiores companhias brasileiras no ramo da
agroindústria, foi comprada pelo Valiance Asset Management Limited, com sede na
Inglaterra.
- A empresa mineira Senergy foi comprada pela alemã
Siemens.
- A Meizler Biopharma, empresa brasileira farmacêutica, foi
comprada pela multinacional belga UCB.
- A Netshoes, de artigos esportivos, passou a ser
controlada pela Temasek, de Singapura.
Dia 04/06:
- A Siac, de Minas Gerais - que produz cabines, toldos e
plataformas para máquinas de movimentação de terra, agrícolas, florestais e
mineração – foi comprada pela International Equipment Solutions, pertencente ao
fundo KPS Capital Partners, dos EUA.
- A SFDK, empresa nacional de análise de produtos
alimentícios, foi comprada pela TUEV SUED, da Alemanha.
- 40% da BSM Engenharia, fornecedora da Petrobrás, foi
comprada pelo Acon Investment, dos EUA.
- A Flores Online, cujo nome dispensa apresentações, teve
32,5% do capital comprado pela
1-800-flowers .com, dos EUA.
Dia 05/06:
- A XPRO, empresa nacional de equipamentos médicos (em
especial, Raio-X), foi comprada pela GE.
- A divisão de catalisadores da Oxiteno, empresa do grupo
Ultra, foi vendida para a suíça Clariant (a fusão da Sandoz com a Hoechst).
Dia 06/06:
- A Yoggi, aquela do iogurte, foi comprada pela BFFC (EUA).
Dia 08/06:
- A Manager Systems (apesar do nome, uma empresa nacional
de software médico) foi comprada pela 7 Medical Systems (EUA).
Dia 11/06:
- A Crivo, da área de tecnologia da informação (TI), foi
adquirida pelo TransUnion, formado pelo Goldman Sachs Capital Partners e pelo
Advent International.
- A rede de restaurantes Batata Inglesa e suas empresas
(Marcas Comestíveis, Orange Fantasy e Squadro Lanchonetes) são adquiridas pela
International Meal Company (IMC), dos EUA.
- A Taterka, uma agência de publicidade brasileira, é
adquirida pelo Publicis Groupe, da França.
Dia 17/06:
- A Itaforte BioProdutos, que produz defensivos biológicos
para a agricultura, foi comprada pela Koppert Biological Systems, com sede na
Holanda.
Bem, leitor, nós paramos por aqui.
INTERESSE
. . . O sr. Eike é o único empresário supostamente brasileiro que sempre consegue se associar a empresas estrangeiras com estas em
minoria. Como ele também negocia ações, na Bolsa, de empresas que não estão
funcionando – e ainda consegue que o BNDES lhe financie – pode ser outro
milagre empresarial...
. . . "o interesse do investidor estrangeiro [em comprar empresas] no
País tem aumentado frente às incertezas encontradas nos mercados internacionais
e deve aumentar nos próximos meses" . . .
Se continuarmos desse jeito, restarão
muito poucas empresas nacionais no
mercado interno, se
é que restará alguma. Existe gente – por exemplo, o atual ministro da Fazenda -
que não acha isso ruim. O problema, portanto, é: quais seriam as consequências
disso? Mais precisamente: quais estão
sendo as
consequências? Aqui, nos deteremos, basicamente, sobre o desenvolvimento
tecnológico, em tentativa de atender ao chamamento da presidente Dilma, que
declarou, no último dia 4, na recepção ao rei da Espanha: "O Brasil está se preparando para um salto
de competitividade em sua economia. Para isso é necessário um desenvolvimento
acelerado de nossas capacidades científicas e tecnológicas".
CAPACITAÇÃO
A invasão das multinacionais – isto é, a
aquisição em massa de empresas nacionais por dinheiro estrangeiro - implica,
necessariamente, em desindustrialização do país, na medida em que devasta a
indústria de componentes e bens intermediários. O exemplo mais evidente é a
indústria eletrônica, que teve a fabricação de componentes liquidada no governo
Fernando Henrique Cardoso – a fabricação foi substituída pela importação.
. . . Que grande inovação tecnológica pode haver na montagem de
componentes importados? [ . . . ] As
multinacionais monopolizam o desenvolvimento tecnológico (a P&D – pesquisa
e desenvolvimento) e o concentram no país onde se localiza a matriz. Esse é
exatamente o conteúdo do "pós-industrialismo" e da "economia de
serviços", ideologia predominante na direção dos monopólios
norte-americanos: transferir unidades produtivas para países com mão de obra
mais barata e centralizar na matriz as atividades e gastos com P&D . . . Por
isso, a desnacionalização da economia – e, em especial, a desnacionalização da
indústria – implica, necessariamente, em estagnação e atraso tecnológico.
Um trabalho recente sobre a relação entre
"investimento direto estrangeiro" (IDE) e desenvolvimento tecnológico
faz a seguinte consideração, resumindo as conclusões da economista
norte-americana Alice H. Amsden:
... se um país em desenvolvimento pretende superar seu atraso
tecnológico, a atração de empresas multinacionais não seria o melhor caminho a
ser buscado, dado que a internacionalização tecnológica ocorre em montante
limitado, e direciona-se especialmente a processos pouco inovadores. Mesmo
considerando que as subsidiárias investem em aprendizado local para adaptar os
produtos às preferências dos consumidores locais, o desenvolvimento completo de
um novo produto ou processo próximo à fronteira mundial é praticamente
inexistente ...
A autora acrescenta a seguinte nota:
Freeman (1987), apud Cassiolato (1992), enfatiza que a
transferência tecnológica via subsidiárias, como a importação de turnkey plants
elaboradas e implementadas por estrangeiros, não resulta em um processo intenso
de acumulação tecnológica na empresa ou país receptor, que teria uma atuação
passiva. O autor compara esses métodos com a política japonesa de rejeitar
investimento estrangeiro e colocar a responsabilidade total na firma doméstica
pela assimilação e aprimoramento da tecnologia importada, o que levou o Japão a
se tornar uma potência tecnológica.
[ . . . ] Notavelmente
– embora não inesperadamente – em todos os setores onde foi maior o
"esforço tecnológico", tal se deveu à iniciativa nacional, pública ou
privada. [ . . . ]
Menos conhecido é o caso da indústria de
"madeira, celulose e papel":
... a positiva performance tecnológica está
diretamente relacionada ao fortalecimento da indústria nacional de celulose
fibra curta de eucalipto, que vem apresentando crescente capacidade
competitiva. (...) esse resultado reflete investimentos históricos realizados
pelo setor. Já no início dos anos 50, técnicos da S.A. Indústrias Reunidas
Francisco Matarazzo inovaram ao conseguir produzir papel para escrever com
celulose de eucalipto . . . Durante o Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento
(II PND) foi formulado o Primeiro Programa Nacional de Papel e Celulose (I PNPC),
em 1974. Nesse momento, ganha impulso a pesquisa voltada a aprimorar a
tecnologia florestal. As grandes empresas de celulose passam a investir no
melhoramento genético que resultou, nos anos 90, na maior produtividade
florestal do mundo.
Durante
anos, houve quem propagandeasse, em nosso país, que a empresa nacional –
especialmente a empresa industrial nacional – era desnecessária. E todas as
vezes em que tal estupidez prevaleceu, não fizemos mais do que regredir
Se os avanços tecnológicos brasileiros nas
áreas do petróleo, aeronaves, madeira, celulose e papel evidenciam que quanto
menor o controle estrangeiro sobre determinado setor da economia, maior o
"esforço tecnológico" (=gastos com P&D/valor da produção X 100),
a recíproca mostrou-se verdadeira. Quanto mais desnacionalizado um setor, menor
o "esforço tecnológico" - inclusive quanto aos gastos com P&D das
próprias filiais de multinacionais.
[ . . . ]
CONHECIMENTO
Alguns leitores, já convencidos há muito –
afinal, não é uma descoberta nova - de que a invasão do país por filiais de
multinacionais é um atraso de vida, pior ainda quando se dá pela compra em
massa e desnacionalização de empresas nacionais, podem estranhar a forma como
estamos repisando argumentos e citando trabalhos – sobretudo empíricos – mais
recentes.
No entanto, se há um campo do conhecimento
especialmente sujeito à luta política e ideológica, este é a economia (o que se
chamava, com mais exatidão, "economia política"). Freqüentemente, em
novas situações (ou nem tão novas, quanto à essência) é necessário provar que
determinadas verdades continuam verdadeiras – ou não.
Por exemplo, vejamos o seguinte trecho de
um artigo que saiu na imprensa no último dia 15: Só até o mês de maio, mais de 10 grandes empresas brasileiras foram compradas por grupos
internacionais. Carlos Alberto Milani, economista do Conselho Regional de
Economia de São Paulo (Corecon-SP), afirma que este fenômeno tem efeito
positivo na economia brasileira. ‘É dinheiro estrangeiro entrando no país que
culmina não apenas em futuros projetos que serão feitos pelos empresários que
venderam seus negócios como também em tecnologia e investimento de ponta –
ainda não disponível no país – que vêm de fora’, explica.
[
. . . ]
MERCADO
Durante anos, houve quem propagandeasse,
em nosso país, que a empresa nacional – especialmente a empresa industrial nacional – era desnecessária. E todas as vezes em que tal
estupidez – o leitor há de convir: esse zurro antinacional – prevaleceu, não
fizemos mais do que regredir.
[ . . . ]
A reversão desse quadro é uma questão
política. Alguém já disse que se trata de escolher que desenvolvimento nós
queremos. Entretanto, antes, trata-se de escolher se queremos ter
desenvolvimento. Um dos trabalhos que mencionamos, termina com algumas palavras
de Celso Furtado, que reproduzimos – expandindo um pouco a citação:
A miragem de um mundo comportando-se
dentro das mesmas regras ditadas por um super-FMI existe apenas na imaginação
de certas pessoas. (…) A idéia de que o mundo tende a se homogeneizar decorre
da aceitação acrítica de teses economicistas. (…) a distribuição da renda nos
planos nacional e internacional é assunto regido predominantemente por fatores
políticos. (…) Nossa política econômica deveria adotar como objetivo
estratégico o crescimento do mercado interno, o que significa privilegiar os
interesses da população (Celso Furtado, O Capitalismo Global, Paz e Terra, 1998).
* Carlos Lopes é primeiro
vice-presidente do PPL
_Quem quiser uma leitura complementar (acessada em
03/072012) pode conferir no link abaixo:
Brasil
cai para 58º em ranking de países mais inovadores