Cem anos de Morin, filósofo da Complexidade
A ' perspectiva de ' extinção ' da espécie humana em decorrência
de suas próprias ações, como vêm apontando ' especialistas nas ciências da
Terra, provavelmente será um dos principais estigmas a assombrar a humanidade neste século XXI. Inauguramos um tempo
sombrio ... nesta Era do Antropoceno, ' por meio da hegemonia capitalista
predatória ', o estágio mais avançado ' de dominação e subordinação da natureza
e, ' de pulsão de morte e de autoaniquilação.
O trágico século XX foi marcado pelas guerras
e pelos totalitarismos ' no seio dos dois principais projetos civilizatórios
fracassados – o capitalismo e o socialismo real –, ' ao longo do período em que
a humanidade vivenciou os maiores horrores contra a condição humana. Estima-se
que ' 187 milhões de vidas foram dizimadas (Brzezinski, 1993) por deliberações
humanas, o equivalente a algo em torno de 12% da população mundial em 1900.
Neste início do século XXI, ' a insistência da humanidade em continuar na rota
ecocida ' capitalista, a degradação ambiental ' planetária, combinada ao '
declínio das democracias e às ameaças ' do fenômeno da algoritmização ' patrocinados
pela globalização ' tecnomercadológica de mundo, constituem os ' principais
motores da ' barbárie civilizatória ' para as próximas décadas.
... Como entender e resistir a um
comportamento humano tão esquizofrênico, ecocida e, no limite, suicida?
Um pensador planetário - Uma das
respostas ... está na trajetória de vida de um dos mais prodigiosos pensadores
contemporâneos, que em (08/07/2021)
celebrou seus 100 anos ... Estamos falando do multifacetado Edgar Morin,
notável pensador francês que, mesmo ' centenário, conseguiu manter, ' a sua
lucidez e capacidade de compreender ' as realidades ' precárias que ele mesmo
vivenciou ...
O renomado sociólogo francês Alain Touraine o chamou de “humanista
planetário”. ' Morin é reconhecido por muitos como um pensador planetário que, '
optou por transitar, ' pela sociologia, filosofia, antropologia, biologia e
muitas outras áreas do saber, ' buscando as conexões ...
' Morin começou a perceber que a realidade
não poderia ser reduzida às noções de ordem, certeza ' e causalidade linear –
atributos ' alicerces dos ideais iluministas da modernidade, ainda ' dominantes
na contemporaneidade. Para ele, a busca da compreensão do real está nas
incessantes interações e retrointerações entre uma infinidade de componentes
que o integram, isto é, a realidade é mais bem compreendida pelo entrelaçamento
de atributos como incerteza, desordem e acaso.
... “A complexidade”, afirma Morin, “é o
desafio, não a resposta”. Diferentemente das visões de mundo que moldaram a
experiência humana no passado e ainda ' no presente, ' a origem do termo
complexo vem do latim complexus, que significa
“o que é tecido junto”, ... Ela procura acolher e conciliar as inúmeras
“verdades” que tentam decifrar a realidade . Ela reconhece ... um oceano de
relações e de incessantes interações que integram o real ... cujos principais
atributos parecem mais próximos da ideia de aleatoriedade, diversidade,
ambiguidade, pluralidade, instabilidade, multiplicidade, imprevisibilidade e
incerteza.
Uma vida desafiada pelo inesperado - ... Morin
' chega ao mundo em 8 de julho de 1921, tendo seu primeiro contato com o
imprevisível. Segundo ele, “o parto foi um momento trágico, no sentido de que a
vida de minha mãe necessitava da minha morte e minha vida devia provocar sua
própria morte. Minha mãe sobreviveu à expulsão, mas eu nasci quase morto, estrangulado
pelo cordão umbilical”. A mãe ... faleceu 10 anos depois, o segundo
imprevisível ' na vida de Morin, que lhe provocou “uma Hiroshima interior”...
Sua adolescência foi marcada pelas turbulências da Europa dos anos
1930, que se afundou em regimes ditatoriais implacáveis e sanguinários ...
Após a guerra, em 1945, Morin voluntariou-se
para ajudar na reconstrução da Europa e foi nomeado oficial do exército francês
' para trabalhar numa Alemanha devastada. Lá escreveu seu primeiro livro, O ano zero da
Alemanha (L’An zéro de l’Allemagne. Paris, França: La Cité universelle, 1946). Nessa obra, ' registra suas primeiras percepções acerca da
complexidade do real. Ele mergulha nas contradições da condição humana ao
refletir sobre a trágica experiência do povo alemão na guerra. Como uma
sociedade que produziu mentes notáveis como Hegel, Marx, Brecht, Kant,
Beethoven e tantos outros foi capaz de se deixar levar pelo devaneio nazista? '
Reflete Morin, “' como era possível ' aquela nação, que abrigou a mais rica
filosofia, a mais bela música, uma cultura extraordinária, tenha sucumbido ao
nazismo”.
... Outros momentos marcantes de sua vida
podem ser consultados no sítio eletrônico produzido pelo SESC-SP (acesso aqui),
que reúne o melhor acervo, disponível no Brasil, sobre a vida, a obra e a visão
de mundo desse extraordinário pensador.
A cegueira diante da complexidade do real - Todas essas experiências ' parecem ter ajudado Morin a desenvolver
' múltiplas capacidades de compreensão ', para além do que a visão de mundo '
sempre impôs em cada momento '. Capacidades que se manifestam ' até hoje, mesmo
' tendo alcançado ' seu centenário ... Sua principal proposta para ' nossa
percepção do real está no “pensamento complexo”, que procura compreender que os
fenômenos ' não podem ser traduzidos pelas dualidades cartesianas '
ordem/desordem, sujeito/objeto, alma/corpo, espírito/matéria, ' emoção/razão,
liberdade/determinismo, dentre ' outras. Na visão complexa de ' Morin, todas
essas dicotomias não são ' tão separadas e excludentes como imagina a visão de
mundo cartesiana, que sustenta o ideário tecnoeconomicista atualmente
hegemônico.
(...)
Foi graças ao trabalho de Morin que ' autores
' do conhecimento passaram a desenvolver ' métodos de cognição e investigação
dos problemas que se colocam diante da experiência humana. A partir desse '
olhar, que considera que o real é “tecido junto”, novos pressupostos para
colocar o pensamento complexo em prática já estão sendo adotados. Daí surgiu
... a aplicação dos chamados operadores cognitivos do pensamento complexo
'. São eles: circularidade, autoprodução/auto-organização, operador dialógico,
operador hologramático, integração sujeito-objeto e ecologia da ação.
Para quem deseja aprofundar-se na ' obra de
Morin, que compreende mais de 100 livros (incluindo-se ' parcerias ' com
diversos autores), e nas suas formulações sobre a teia de relações que integram
o mundo real ... para quem deseja ' melhor compreensão das ' nuances ' nas
concepções sobre a vida, a condição humana, o nosso destino, e ' uma ética '
que nos permita ' melhor conexão com a complexidade do mundo real ' de modo a
evitar o abismo para o qual estamos caminhando ...
Compreender a condição humana - Um dos
legados mais importantes da abrangente obra de Morin talvez esteja nas suas
reflexões em torno da condição humana ... que define o ser humano
exclusivamente pela racionalidade tecnoeconomicista. O homem é, a um só tempo, sapiens e demens (sábio
e louco), faber e ludens (trabalhador
e lúdico), empiricus e imaginarius (empírico
e imaginário), economicus e consumans (econômico
e consumista), prosaicus e poeticus (prosaico
e poético).
Somos, portanto, mais bem compreendidos pela ideia de um Homo
complexus, que nas palavras de Morin significa que “o ser humano é
um ser racional e irracional, capaz de medida e desmedida; sujeito de
afetividade intensa e instável” ... Morin alerta, que “quando há hegemonia de
ilusões, excesso desencadeado, então o Homo demens submete
o Homo sapiens e
subordina a inteligência racional a serviço de seus monstros”.
( ... )
Contrariando ' supostos benefícios ' de um
progresso da humanidade, que poderiam advir ' dos algoritmos, ' que se
conseguiu até agora com essa visão cibernética de mundo foi amplificar ' o
ímpeto de controle, dominação e apropriação da verdade que caracteriza a cultura
patriarcal milenar. De um lado, afloram ' novas regressões sob variadas formas:
ameaças às democracias em muitos países, corrupção generalizada, desigualdades
socioeconômicas ', regimes totalitários, ' crime organizado, xenofobia, racismo
e outras formas de desagregação do tecido social. De outro, assistimos ' a um processo
de degradação ambiental em escala planetária, que já nos colocou dentro da
sexta extinção em massa e ameaça nossa sobrevivência como espécie.
No fundo, ' Morin nos mostra ' que estamos no
cerne de uma mudança ' histórica, na qual há uma ' crise de percepção que
fragmenta os modos de interpretação da realidade ' que constitui a gênese da
vulnerabilidade institucional que fragmenta os modos de intervenção nessa mesma
realidade ... Morin propõe uma passagem ... para o pensamento complexo, cujo
enfoque está nas interações, incertezas e imprevisibilidades, que é bem mais
abrangente para lidar com a complexidade da condição humana e da realidade que
a cerca...
A esperança na metamorfose - ... Como
diz Morin, “por todo lugar se aceleram e se amplificam a crise da democracia, a
crise da biosfera, a crise do pensamento, o sonambulismo político, e também os
delírios xenófobos, racistas e belicistas”. Razão pela qual ele alerta que “a
desintegração é provável. O improvável, mas possível é a metamorfose”. A aposta
na metamorfose ' é o elemento catalisador da capacidade humana, diante da ' da
autodestruição, de mudar seu modo de ver e interagir com o mundo e, '
ressignificar-se diante de uma crise ' profunda, pois, nas atuais condições do
nosso planeta, sem ' mudança ' em nosso modo ' não teremos futuro. “Quanto mais
nos aproximamos da catástrofe”, diz Morin, “mais a metamorfose é possível.
Então, a esperança pode vir do desespero”.
[ . . . ]
Salve a vitalidade de Edgar Morin! Salve a
sua centenária e vigorosa rebeldia! ' Que nos instiga a aceitar e a abraçar a
complexidade das dinâmicas que sustentam a vida, para nos livrarmos ' da
insanidade capitalista que está destruindo ' nossa humanidade e a ' biosfera.
Uma ' inspiração para superarmos ' impasses civilizatórios deste século,
enquanto ainda temos tempo.
De nossa parte interessou pesquisar/conhecer um pouquinho melhor sobre a vida e obra desse amável autor. Até como parte e nos integrando melhor aos estudos realizados no âmbito da Disciplina "Direitos Humanos e Cultura de Paz na Perspectiva das Epistemologias do Sul", na condição de aluno Especial do PPGCSA (Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais Aplicadas), Mestrado em Ciências Sociais Aplicadas da UEPG (Universidade Estadual de Ponta Grossa) - turma 2021. Sob a coordenação e orientação do professor Dr. Nei Alberto Salles Filho.
https://outraspalavras.net/terraeantropoceno/cem-anos-morin-filosofo-da-complexidade/. Acessado em 08 de julho de 2021.
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